quinta-feira, 2 de novembro de 2017

O Quadro

Me vi diante da porta que a tanto tempo eu não abria, exitei um pouco ao tocar a maçaneta.
Se passaram tantos anos, faltou-me neste momento a coragem de olhar pra dentro...o passado.As roupas, papeis, livros, vestidos...sonhos.Tudo ainda estava lá dentro...vivo.
Entrei devagar, a porta rangeu um pouco, mas nem tanto quanto eu esperava. Coloquei-me dividida entre fora e dentro daquele quarto.
Senti medo de trazer à tona lembranças, ansiedade por descobrir o que eu havia deixado lá.
O que eu ainda precisava resolver?
Fiquei alguns instantes com a cabeça apoiada na porta. Ousei virar o rosto para o interior do lugar que um dia vivi.
Surpreendi-me com a beleza que ainda existia, a pureza da decoração simples, pude sentir o perfume das roupas que ainda estavam a minha espera, calmamente penduradas no mancebo.
Sob a penteadeira, ainda repousava a escova de cabelos, o primeiro batom, o espelho que tanto refletiu minha imagem de menina.
Entrei devagar, agora sem medo e feliz em rever coisas que mostravam o tempo feliz que vivi.
Aproximei-me da cama simples, no criado mudo o porta retrato da família, sentei-me na beirada da cama com o porta retrato nas mãos, olhei com ternura e recoloquei no lugar.
Ao meu lado acariciei o velho travesseiro, tomei-o em minhas mãos e o levei ao rosto. Fechei os olhos, pude sentir o carinho suave de minha mãe, ouvir as broncas de meu pai, e a alegria de meus irmãos.
Fiquei um tempo ali, assim só relembrando. Saudade daqueles tempos.
Abri meus olhos, coloquei o travesseiro em seu lugar.
Com um suspiro,olhei ao redor e deparei-me com um quadro no chão, somente apoiado, uma recusa racional de todos em pregá-lo na parede.
Olhei bem pra ele, uma tristeza invadiu meu peito.
Eu o chamava de "Quadro dos meus sonhos", havia pintado com esmero amador, pinceladas delicadas, cores suaves, alegres nuances que me transmitiam paz... a paz que eu precisava. Gostava de olhar pra ele antes de adormecer.
Num rompante percebi, o que fizeram com meu quadro? Me perguntei indignada.
O quadro...os meus sonhos, não mais existia, estava coberto por pinceladas agressivas, indelicadas, cores muito fortes e perturbadoramente em desacordo com o que eu havia escolhido quando o pintei.
Senti raiva.
Ajoelhei-e no chão e chorei, chorei muito, não sei por quanto tempo permaneci estagnada diante daquele estrago.
Levantei-me decidida, e com muita força o joguei contra a parede.
A madeira deteriorada partiu-se deixando em abandono parte da tela já craquelada e amarelada pela ação do tempo.
Com determinação, peguei seus restos e levei-os para fora, banhei de álcool e joguei o fósforo, a chama da libertação.
Um alivio extremo tomou conta de mim ao ver as labaredas consumirem aquele quadro triste... até que dele sobrassem apenas cinzas.
O vento, meu amigo de tempos, soprou forte e rapidamente levou pra bem longe de mim todos os resquícios daquilo que um dia me trouxe tristeza.
Em minha memória a imagem do quadro dos meus sonhos está intacta, a imagem que quero manter viva por toda a eternidade, como testemunha de toda a felicidade que um dia vivi!



Por Sônia Regina

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